Todos os dias (de minha vida)
Imagem: "Silent figure with Landscape {Pregnant whit shadows}, do artista øjeRum.
Um
dia, chegando em um grande pomar de flores,
Descobri
que as minhas medianas frutas não valiam muito ali.
Ainda
que em minha casca houvesse as cores, as folhas e até as plantas.
Acabei,
por fim, chupando todas elas sob a sombra da noite, sozinho.
Um
dia, chegando em uma festa,
Descobri
que o meu silêncio não cabia muito ali.
Ainda
que eu possuísse braços, pernas e os movimentassem.
Acabei,
por fim, dançando as músicas que a minha cabeça tocava, dormindo.
Um
dia, quando eu morava na infância,
Descobri
que havia cômodos maiores que a minha pequenez ali.
Ainda
que eu carregasse a inocência, a alegria e a disposição de pular por aí.
Acabei,
por fim, me esticando até que parecesse mais distante, de lá.
Um
dia, chegando em uma livraria,
Descobri
que as minhas revistas não tinham lugar ali.
Ainda
que tivessem letras, imagens e assuntos.
Acabei,
por fim, recortando elas e colando algumas partes em mim, pela vida.
Um
dia, chegando em uma aula,
Descobri
que a minha língua não falava e nem ouvia ali.
Ainda
que eu compreendesse as piadas, os conceitos e os sentidos.
Acabei,
por fim, notando as geografias das palavras e fingindo que entendia, sorrindo.
Um
dia, deitando em minha cama,
Descobri
que a vontade de fechar os olhos não existia em mim.
Ainda
que eu estivesse cansado, com sono e com medo de deixar os olhos abertos.
Acabei,
por fim, me segurando até que fosse vencido, desde então.
Um
dia, chegando em um supermercado,
Descobri
que as minhas carências não seriam ocupadas ali.
Ainda
que eu precisasse de alimentos, de especiarias e de gorduras.
Acabei,
por fim, me acostumando com as idas e vindas, vazio.
Um
dia, chegando em uma consulta médica,
Descobri
que as minhas doenças não seriam descobertas ali.
Ainda
que eu permitisse os toques, as perguntas e os momentos de tensão.
Acabei,
por fim, tomando um anestésico, mas não deixei de sentir as dores, que doíam.
Um
dia, lembrando da minha memória,
Descobri
que ela não me tinha como lembrança ali.
Ainda
que eu pudesse dizer o que me aconteceu hoje, ontem ou em algum ano atrás.
Acabei,
por fim, esquecendo de mim enquanto lembrava de tudo no mundo, em erosão.
Um
dia, chegando atrasado em um local qualquer,
Descobri
que eu era um oceano de perfumes suspeitos ali.
Ainda
que eu não criasse faunas e floras marítimas ou pérolas.
Acabei,
por fim, desaguando com a dignidade da pele e a estrutura dos ossos, sempre.
Um
dia, chegando para fazer uma prova,
Descobri
que não era mais possível ter o controle ali.
Ainda
que eu conseguisse ficar muito quieto, respirando baixo, me encolhendo.
Acabei,
por fim, tendo o gesso (frio, frágil, esperto) como modelo, de desespero.
Um
dia, olhando para um mesmo espelho,
Descobri
que nem eu, nem o meu próprio reflexo, reconheciam o corpo ali.
Ainda
que soubéssemos os nomes das partes, as partes dos nomes e as suas funções.
Acabei,
por fim, dando a mim o que é meu e ao corpo o nada que lhe é seu, apenas.
Um
dia, chegando perto de minha mãe na cozinha,
Descobri
que ela e eu somos tão diferentes, quanto iguais, ali.
Ainda
que usando o mesmo saleiro, mas com variadas pitadas de tempero.
Acabei,
por fim, atando a sua mão esquerda à minha direta e atravessamos a rua, juntos.
Um
dia, chegando em casa depois de um turno cansativo,
Descobri
que a minha canseira não era simples fadiga quotidiana ali.
Ainda
que eu sentisse subir os suspiros, me atingir as pontadas e as câimbras.
Acabei,
por fim, desistindo do descanso, preferindo o nublado torpor, existencial.
Um
dia, tento alguns incessantes pensamentos ruins,
Descobri
que os bons são como assopros, francos e passageiros ali.
Ainda
que refresquem a alma com vento no rosto, água nas costas, chuva na terra.
Acabei,
por fim, abrindo as portas e as janelas e o coração, já adoentado.
Um
dia, chegando quase na data do meu aniversário,
Descobri
que a ousadia muitas vezes é o esconderijo dos réus juvenis dali.
Ainda
que nela se ouça o sibilar dos erros, o coaxar das derrotas e o veneno dos
medos.
Acabei,
por fim, saindo aos tropeços pelas estradas da covardia, adulto.
No
dia em que cheguei no mundo choroso,
Descobri
que também eram minhas as tingidas lágrimas que caíam ali.
Ainda
que ele me cobrasse só com as moedas do vermelho, do amarelo e do azul.
Acabei,
por fim, sendo um couro onde o mundano experimenta misturas, multicolores.
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