Cada minuto é um verso de uma hora que não pode ser marcada.

Imagem: "Leigh Bowery (Seated)" (1990), de Lucian Freud.

São cinco horas da manhã.
Isso significa que é o limite do dia, sem que eu saiba se ele está terminando ou começando.
Não tenho mais o hábito de escrever poesia: não sei mais ler as horas,
Talvez seja por isso que eu sempre me atrase, logo, estou euforicamente cansado,
Ansiosamente quieto.
Tenho certeza, no entanto, que isso acontece porque eu vivo no limite do dia das coisas: quando fecho os olhos e abro os olhos, os ponteiros dos relógios já estão muito adiantados,
Estando eu ainda no início do círculo que é todo aquele mecanismo de peças e ruídos e sucessões.

Às uma da manhã,
Se tem todo o tempo do mundo: eu posso assistir qualquer baboseira aleatória, brincar de ser menino, comer algo salgado ou doce enquanto ouço músicas, além de conquistar todos os seis continentes.
Eu penso em assistir qualquer baboseira aleatória, em brincar de ser menino, em comer algo salgado ou doce enquanto ouço músicas, em ir além e conquistar todos os seis continentes.
Mas é preciso ter cuidado, uma coisa de cada vez, porque dois braços têm apenas uma vida
E a mandíbula, querendo comer todas as frutas dispostas no cesto, se desloca e acaba por nada comer.
Decido, portanto, terminar o que estava vendo –– falta pouco, muito pouco ––,
Logo estarão soltas as minhas mãos, os meus pés, os meus olhos, a minha atenção, enfim, até o meu estômago, para poder se ocuparem outra vez.
Então, entrego o meu corpo para os meus dedos, passando por entre eles como um anel a ser descoberto com quem está, em uma brincadeira nada infantil;
Aliás, em uma brincadeira que antes de mais nada é puramente infantil e quem discorda é porque se esqueceu de como as crianças se relacionam com tudo.

As duas da manhã chega ofegante (só ela?).
Perdi tantas coisas brincando, mas faltam tantas outras para serem perdidas que invento esperanças de que ainda há muitas estrelas para a noite acontecer.
Relaxado, mas sem descuidar de permanecer na silenciosa solidão, eu borro os meus olhares com a rigidez dos músculos:
O céu que enxergo é ausente de qualquer negridão, morte definitiva ou friagem;
Ele é, na verdade, uma sopa de coloridos clarões com organismos quentes, que tentam continuar vivendo como eu tento.
A partir disso, criei a cinzenta Via-Láctea e a origem leitosa dos primeiros seres vivos e sua friccionante caminhada até os bebês nascidos segundos atrás.
Tamanha irresponsabilidade me fez sentar no tribunal da fome e da sede –– o martelo bateu forte, perfurou a consciência, vazou culpa por todos os lados:
Estou condenado; eu sou culpado! E é isso.

As três da manhã sai dos canos
Como águas que lavam os pecados da (minha) humanidade.
Eu vejo o passado recente e o futuro distante; maldigo o que vem de trás e vanglorio o que volta de frente
E ainda que o meu ser sempre esteja a meio caminho de um e de outro, as minhas mãos ainda estão sujas de proteínas e de vergonhas, o bastante para não poderem se expor.
Deus chora através das torneiras e as imagens das outras mãos, dos outros pés, dos outros peitorais, dos outros pelos, dos outros sexos, vão se tornando mais e mais opacas;
De igual maneira, o poeta pagão vai se tornando também mais e mais opaco.
Converteu-se: quebrou os santos e os deuses; queimou os livros e os desejos; secou a pele com gelo e, frígida, sentiu frio; por fim, tornou-se esse eu.
Tudo vai voltando para os seus antigos lares: o corpo já se recuperou dos solavancos infernais; as abaixadas roupas sobem para cobrir as partes e das alegrias só sobram o gosto amargo de outro momento que foi ao leite.
Os rabos dos cometas se acalmam como se nunca estivessem em fogo.
Todas as coisas estão no azul ou no rosa, na direita ou na esquerda, em uma ou outra nádega, mas eu sou sempre os meios e neles há sempre um estar perdido que estou.

Já são quatro horas da manhã.
Passou tão rápido quanto a vida parece passar depois dos infinitos quinze anos.
Foi como uma criança correndo atrás dos pombos que se alimentam ou como um beija-flor que some depois do piscar –– eles fogem, ele voa, eu envelheço como as horas.
Não fiz tudo o que poderia fazer, ainda que tivesse pensado em tudo o que poderia fazer; apesar de ter pensado em tudo o que poderia fazer; porque pensei demais em tudo o que poderia fazer.
Demorei muito para perceber que as minhas solas não tocavam o chão quando eu caminhava: as pedras estão aqui, o cansaço também e eu flutuo, enquanto sou sangrado, marcando as ruas.
Assim começa a história das minhas alucinações: não nasceram de agora, mas foi depois de crescidas que elas desvendam os segredos da realidade.
Vejo animais inexistentes existindo, às vezes nas paredes ou ao meu lado; sinto as portas fechadas quando elas estão abertas; nas esquinas da cidade, as pessoas me olham através dos meus olhares.
Alguém bate forte no portão (ninguém); alguém claramente me chama lá fora (dizem que é a morte); ao sair de casa, ouço bater e chamar de dentro e a noite, senta sobre a minha cabeça e amassa os meus sonhos.
Tudo isso acontece na cortina do canto dos meus olhos.

São cinco horas da manhã ainda.
Depois de atravessadas todas essas tragédias, agora, quase com sono, eu invento de ser filósofo e me atrevo a diluir o peso da poesia e da cristandade no líquido da existência.
Até aqui, eu conheci o céu dos homens e o inferno também dos homens: choram por mim os demônios e, de mim, riem os anjos.
A filosofia surge da colisão desses dois universos, diferente das minhas falanges que ao irem uma contra a outra, elas doem e cada uma tenta prevalecer e ganhar a guerra.
Os meus punhos se racham, os vãos entre os dedos se rasgam, o diagnóstico da quiromancia é certo: alergia da vida, simplesmente.
Não tenho o jeito para o entender, mas para o sentir –– estudo as ideias com as fórmulas das sensações e o resultado final é sempre um erro.
E eu me pergunto: que destino está fadado a mim que não tenho o nome bíblico?
Quem fez de nós a palmatória e as palmas para aqueles que julgamos merecer o tapa ou o aplauso?
Mesmo assim, os meus versos são até melhores do que o meu caráter humano.
Essa ordem de horas, de versos, de estados virginais e pornográficos, não segue sempre ereta: de vez em quando, ando pelos aposentos no escuro à uma; às três, eles andam sobre mim; brinco às duas e às cinco de novo; rezo às quatro, mas sempre, em todas as horas, desequilibrado de mim.
Tentei lê-las: acabei escrevendo um poema tentando me levantar, tentando não me atrasar.
Me atrasei: é madrugada (isso que não sei se é início ou fim das coisas)!

Agora são seis da manhã.
As minhas costas sentem a vertigem das viagens e dos crimes que eu percorri nessa vida em minutos.
Se acendem as sombras internas e, ao longe dos tijolos caseiros, as demais se escondem sob o desponte do sol pueril.
Perto de minha casa, é possível ouvir um barulho como se fosse uma enxurrada, não sei se de gente, de carros ou de alguma outra máquina.
Quer dizer, de gente eu sei que não é, mas já não posso garantir se são de carros, de máquinas ou de qualquer outra coisa.
Existem alguns instantes que gosto de imaginar que é a colheita do mundo, um novo dilúvio com novos elementos, só para sentir um pequeno desespero e alívio, porque de um lado, a dor é inevitável, mas por outro, ela é amortência.

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