A menina que odiava bonecas

        As coisas ali eram colocadas delicadamente em busca da perfeição. As cortinas tinham as cores e os desenhos reconhecidos pela idade da menina. As janelas ficavam abertas até o último raio de sol não mais existir. Dessa maneira as paredes deixavam tudo muito inocente para aqueles que viam de fora. Somente para aqueles que viam de fora. Um grande guarda-roupa escondia as muitas mentiras que faziam a menina odiar o que odiava. Ele desejava mais roupas que sua própria dona e ela sabia disso. Na escrivaninha repousavam as maquiagens que tornavam a menina o que era. As flores dos lençóis acompanhavam todo o jardim que se espalhavam pelo quarto. Elas nunca morriam, mesmo nas vezes que a menina desejava. E junto com os livros, as bonecas permaneciam quietas para que todos as amassem. Eles as amavam, menos ela. Por isso ela acordava e adormecia com a mesma insatisfação.
       Ela nunca estava sozinha em seu quarto: estava sempre acompanhada pelos olhares que nunca se cansavam, pelos sorrisos que não desapareciam. Pelos sapatos que não sujavam e cabelos que não despenteavam. Talvez isso a incomodasse, eu não sei. Apenas tenho conhecimento de que dentro dela tudo isso acontecia e ela achava isso muito injusto. Elas são perfeitas e nem ao menos têm vida, pensava ela. E os botões dela sabiam que ela tentava sobreviver todos os dias.
       Como qualquer outra menina, abria os olhos. Sem pressa tomava banho e se arrumava para ir à escola. Dentro do guarda-roupa tirava um vestido frágil, depois se maquiava de uma maneira sutil na frente do espelho. Todos os fios de cabelos colocados em seus lugares. A pele branca não precisava de muito cuidado, se destacava em meio a tanta leveza. E para terminar o que já poderia estar acabado, os colares e aneis a faziam brilhar mais. Apesar de estar cansada disso, ela já estava pronta para mais um dia de vida. Os laços nos sapatos dela não disfarçavam a confiança em seus passos.
       Todos queriam ser amigos dela, ter um pouco de sua atenção. As meninas queriam ser como ela, os meninos a queriam como namorada. Sua beleza era impecável e todos deixavam isso claro. Para os professores era uma ótima aluna, para os pais uma educada e carinhosa filha. As amigas diziam que ela era leal e um exemplo a ser seguido. E para os outros, uma menina perfeita. Mas poucos sabiam que ela tinha sido criada para ser assim. Ninguém nunca perguntou se ela realmente aprendeu tudo aquilo. Se ela queria ser assim. Ou se simplesmente por dentro, ela refletia a mesma beleza que o espelho mostrava.
       Depois de mais um dia de aula, ela voltou para sua casa que ficava vazia até o começo da noite. Ainda faltava muito para anoitecer e ela estava cansada demais de sua vida. Ela subiu até o quarto, observou tudo como se soubesse o que queria fazer. Seria a última vez que ele estaria daquela maneira. Sim, ela havia decidido. De novo, desceu, trancou as portas, fechou as todas as janelas e as cobriu com as cortinas. Ela foi para o quarto e se fechou lá dentro.
       As bonecas que permaneciam quietas foram pegas e colocadas na cama. As gavetas foram abertas de uma maneira violenta a procura da própria destruição. Desenhos agressivos e coloridos delas enfeitavam a parede que nunca foram vítimas de nenhum ódio. Os lençóis foram usados para ridicularizar todas que assistiam. E elas permaneciam paradas, sorridentes e perfeitas, assistindo a decadência de sua dona. Ou de sua serva.
       A menina já estava sem forças, pegou as bonecas e começou a destrui-las. Os cabelos além de despenteados agora estavam cortados. Os sorrisos que nunca desapareciam estavam distorcidos e assombrosos. Os olhares incansáveis eram furados e jogados por todas as partes do quarto. E em seus lugares permaneciam uma profunda escuridão.
      Quando já estava terminado, a menina se levantou e observou tudo que tinha feito. Ela se sentia segura no meio daquilo. Mas ela ainda não se sentia sozinha como gostaria. Faltava algo e ela não conseguia ver o que era.
      Então, ao olhar no espelho, viu a última boneca a ser destruída. Nada fez com ela, a não ser adormecer uma tesoura em seu coração. Aos poucos ela foi se deitando, até permanecer inteiramente sozinha. Agora ela é perfeita e sem vida.

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