Facas únicas
Sua corrida é
ligeira, apesar dos passos serem curtos e tímidos. Tem um certo desespero
contido ali, naqueles pés, que se liberta e se abafa ao mesmo tempo em cada
novo espaço alcançado pela sua ida. Ela parece não desejar voltar de onde vêm.
Quem a vê correr, se é que a veem, duvida se ela quer mesmo sair do lugar;
talvez nem devêssemos chamar isso de corrida, mas de um rápido caminhar, de uma
afoita marcha. Ela está vestida de um sobretudo negro, sapatos de salto alto,
com os cabelos colocados de uma maneira especial para suportar um transparente
véu, também negro, que lhe cobre os olhos desconfiados; eles olham para todos
os rumos como se esperassem que algo de surpreendentemente ruim aconteça e
afete a dama que lhes carregam. Fechado o sobretudo, o seu comprimento, que vai
até os joelhos dela, não permite saber o que existe debaixo daqueles tecidos
que contêm, em si, a profundidade da noite. O braço direito dela mergulha na
parte interior da vestimenta e, sem nenhuma mudança por causa do seu
movimentar, permanece como se algo confidencial segurasse a sua mão; já o
esquerdo, puxa a mesma parte do sobretudo na tentativa, quase bem sucedida, de
tapar a invasão e disfarçá-la. Seu semblante é uma mistura de assombro,
preocupação e nojo.
É uma segunda-feira
de serena luz solar, as ruas estão cheias de carros e as calçadas, de pessoas
dentro de suas rotinas, como é de se esperar. Ela desvia dos andantes como se
dançasse uma música que apenas ela ouvisse –– quem sabe, de fato, ela esteja
ouvindo e eu que seja mais um outro surdo para timbres tão específicos. “Os
dias todos poderiam ser chuvosos, assim ninguém ficaria por muito tempo fora
dos recintos”, pensa ela no momento em que, por pouco, não encosta no ombro da
moça à sua frente que parou de andar de repente. Superado o obstáculo no
percurso, ela continua a sua trajetória atravessando a rua, enquanto os carros
se aglomeram a espera da permissão de colecionarem mais pavimentos. Ela sabe,
sabe que todas essas pessoas guardam a mesma coisa que ela; que elas são tão
perigosas quanto e é por isso que ela não quer encará-las, encostá-las e
conversá-las.
Do outro lado, ela
olha para a calçada paralela a se certificar de que não está sendo seguida. É
tanta pressa, semelhante a uma animália que foge do seu predador natural, que
ela nem se atreve a observar os reflexos que vão lhe acompanhando, ausente o
risco de fixá-los nos próprios espelhos da alma. A humanidade que a provêm é a
mesma que a devora. Nota-se pelo jeito impecável de se vestir e se adornar,
também pela maneira confiante em que todos os movimentos se equilibram sobre o
seu corpo, que o cuidado é uma presença nesta mulher, mas por alguma razão uma
de suas pernadas desconversam com a intenção e ela cai de joelhos em meio à
aglomeração. O braço esquerdo rapidamente solta o sobretudo e se alonga em
direção ao chão para que a queda se estabilize; o direito está como sempre
esteve, sem que o seu segredo seja revelado. Poucas pessoas reparam realmente
no ocorrido, porém tão logo há o desmoronamento, surge também as suas
consequências: pernas distantes se aproximam, preenchendo o alcance visual
dela, que ainda mantém a cabeça inclinada.
Como se a força
invisível que lhe amarra a mão direita se desfizesse pelas mordidas do instinto,
das cortinas enlutadas saí uma mediana faca que reluz sorrindo para os
curiosos. Ela se levanta. As pessoas se afastam. Silêncio. Algumas pisadas para
trás são dadas e ela se vira de costas e corre violentamente. Na mão direita a
faca, na esquerda, a liberdade –– o seu crime.
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