Enfim

Desconheço o tanto que ainda continuarei aqui
E talvez, realmente, a minha hora esteja chegando
Eu preciso correr –– preencher estes pés com milhas
(Se não, por quais caminhos voltarei quando eu me for?)
Da mesma maneira que eu preciso escrever
–– Sujar a brancura com a minha terrível desgraça
Sem que ela pareça tão feia como, de fato, o é
A Beleza tem dessas pequeninas brincadeiras:
Extasia os olhos com outros Olhos;
Alimenta as bocas com outras Bocas;
Enfim, completa os corpos com outros Corpos
E a alma se transmuta em onde já é morada

Eu preciso escrever –– como se não existisse nada mais
Como se não houvesse amanhãs nas pontas das noites
Porque é verdade que nada existe e que antes do escuro
Há mais escuro, semelhante aquilo que vem depois dele
Se não são as palavras, como terei graça nesse rosto?
Elas são os semblantes de coisas que são invisíveis
E a transparência é quase como a irreal irrealidade
Eu daria metade das palavras que conheço
Para desconhecer a outra metade que ainda conheceria
E devolveria metade da idade que eu aprendi
Para ter a idade que as primaveras me decretaram
Assim, poderia, eu, ser o filho daquele que não quer um pai
Tornando consumada a maior das minhas traições

Eu preciso escrever –– com o perigo de nenhum algo me existir
Nem traço algum, nem contornos e curvatura alguma
Porque esse é o meu rosto, o meu corpo e a minha beleza
Que ninguém mais além de mim conseguirá pensar e sentir
(Se eu não escrever, quais narrativas me ouvirão quando eu me for?)
Enfim, da mesma forma que eu preciso morrer
–– Amenizar essa fantasia majestosa de também persistir
(Se eu não tenho tal vontade, do que sentirei falta quando eu me for?)

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