Insonícula rouxinol
Eu me acostumei há tanto tempo em adormecer tarde da noite que sinto como
se eu não conseguisse mais fechar os olhos antes. Fico sem saber o que fazer,
quando tento: procuro luzes que possam estar ligadas, portas mal-trancadas,
torneiras pingando incansavelmente a serem fechadas; invento até uma fome que
não está lá e aproveito para procurar insetos que estejam vagando pela casa.
Assim, caso encontre, eu poderia dizer a alguém que me questione: “eu dormi
tarde, porque tinha um rouxinol voando aqui dentro e me atrapalhava o sono”. É
como se meu corpo transpassasse um diálogo em que o adulto diz à criança: “Vá
logo para a cama! Essa não é a hora para os pequenos estarem acordados”. Aliás,
talvez, nessa troca de frases silenciosas em que meu corpo é apenas retrato,
quem fala não é o adulto, mas eu mesmo, ainda criança, porém crescido: “Durma
mais cedo! Já se passaram os dias de diversão. Agora é hora do dever de
casa...”. Tão difícil é deixar as brincadeiras na rua e voltar para casa;
largar o livro e olhar o mundo; lavar os pés, as mãos, para que não se sujem
nunca mais.
Algo em mim mudou. Algo em mim não está o mesmo. Os ponteiros se adiantaram
algumas casas; o ciclo girou mais uma vez. Círculos não têm inícios, nem fins,
por isso não sei onde tudo começa e onde tudo termina: alguns diálogos, sejam
pelas palavras, sejam pelos corpos, parecem obedecer a mesma lei. Talvez a
concordância seja mais viciosa do que as discordâncias; talvez a continuidade
esteja mais na criança do que no adulto. Quem sabe essa mudança, esse não estar
o mesmo seja...
“É momento de aprender um novo jeito de brincar”, disse o adulto para a
criança. E eu, insistindo em escrever tudo isso, acabei por ficar acordado bem
tarde outra vez.
Comentários
Postar um comentário