O semeador


       Não é importante citar o quando e o onde isto aconteceu, porque tempo e espaço não são coisas que o coração compreende; não quando esse quer desenterrar uma lembrança ou inventar uma fé em um futuro incerto. E para compreender o que está por vir é necessário enxergar com o coração, não única e simplesmente com os olhos e a mente.
       Era um menino de aproximados cinco anos de idade. Vestia-se com roupas muito gastas, às vezes rasgadas, outras manchadas, mas sempre bem colocadas. Mesmo sendo coxo e tendo no rosto uma deformação, ele não deixava de ser lindo; talvez nem fosse tanto, mas a alegria que ele exibia tornava as coisas mais amenas. Ele surgia todos os dias naquela mesma rua, naquele mesmo horário, junto de sua cestinha coberta por um fino pano florido. A rua era extensa, permanecia deserta e apresentava grandiosas e bonitas casas. Sua chegada era tímida, porque ele sabia que não podia competir, de qualquer maneira, com nenhuma delas. Como era muito pequeno, logo ele arranjava algo para alcançar as campanhias. No primeiro dia em que ele começou suas visitas, apenas uma das casas abriu suas portas:

      - Com quem... - A empregada parou sem entender a razão de uma criança estar na frente da porta, mas continuou - O que você quer menino?

       - A senhora é a dona da casa? - Perguntou o menino que até então estava de cabeça baixa mexendo em sua cestinha - Se a senhora não for, poderia chamar o dono? Porque tenho um presente para ele - E levantou o rosto sorrindo para a mulher.

       A mulher ficou assombrada, não imaginava que o rosto de uma criança poderia repousar marcas tão profundas. Ela se refez, tentando não passar o susto ao falar com o menino:

     - Não... Não, sou a empregada. Mas não posso incomodar meu chefe por causa de uma criança - Sumindo atrás da porta, começou a fechá-la.

      - Por favor, por favor... Peça que ele venha até aqui. Fale que é algo muito importante, um presente, mas que só posso dizer a ele o que é - Disse sorrindo.

       - Está bem. Só não prometo que ele virá.

       Os motivos que a fizeram fechar a porta querendo que ela abrisse novamente foram maiores do que a pena que sentia do menino; os passos rápidos em busca do seu chefe mostravam isso. Enquanto ela dizia quem o esperava lá fora, ele já arrumava todos os materiais que seriam precisos. Apesar da empregada ser muito querida pelo chefe e ter uma ótima persuasão, ele era um bom homem, foi isso que o fez ir verificar que presente era esse:

       - Prazer linda criança, eu sou o dono da casa -  O homem era alto, tinha uma voz forte, agradável e nos lábios um sorriso sincero aparecia. Os olhos dele pareciam pequenos quando sorria - Minha empregada me disse que você me esperava. E que tinha um presente para mim... Hum, que presente é esse?

      - Muito obrigado por ter me recebido, senhor. São flores - Ao falar isso, mostrou um pacote de sementes - Eu queria plantá-las na frente da sua casa. Não precisa pagar. Mas um aviso senhor, eu cuidarei delas até conseguir semear todas as casas da rua. Quando isso acontecer, as flores serão totalmente suas. Posso, senhor?

        - Claro, claro!

       Com a resposta, o menino foi apressado escolher o lugar da fachada onde plantaria as sementes. Foi vendo-o caminhar que o homem percebeu que além do rosto doloroso, ele também carregava o fardo de ser coxo. Por mais estranho que isso seja, o homem se encantou com toda a cena; decidiu então ficar ali assistindo todo o espetáculo. O menino parecia estar mais em uma brincadeira do que em uma séria ocupação, mas isso não significava que ele a fazia sem dedicação. A pouca idade não anulava a habilidade profissional ao mexer com as sementes; as pequeninas mãos exalavam um carinho maior do que ele ao manusear toda aquela natureza. Eu não sei dizer quanto tempo se passou, porque certamente ambos não tiveram a mesma percepção. Mas já é sabido de todos: quando vemos ou fazemos algo que nos é apreciável, a demora parece muito rápida; um segundo de uma eternidade. Terminado o trabalho, o menino se despediu do homem e esse sabia, ao ouvir o som da porta sendo trancada, que todas as coisas estavam diferentes.
       E ninguém mais quis ser presenteado, não naquele dia. Ele continuou voltando para a sua solitária procissão pela rua nos outros dias, mas as coisas não se faziam tão fáceis assim. Haviam aqueles que nem esperavam a fala do menino terminar para dizerem um "não" e fecharem a porta; outros nem ao menos o ouviam. Alguns chegavam ao ponto de o humilharem, ofenderem e até o empurrarem para longe da entrada da casa. Adultos são dessa maneira, ignoram o que os pequeninos dizem, mesmo quando se pode tocar a verdade na cor dos olhos deles. E se essa verdade colorida os incomoda, eles a afastam de si mesmos até não poderem mais vê-la.
       Diferente das outras portas que nunca se permitiam entrar, uma se fez tão impenetrável quanto os sonhos de outro coração. Era uma das casas mais bonitas, para não dizer a mais, e o seu tamanho era proporcional à sua beleza. Banhada por um branco nunca visto pelo menino, ela parecia brilhar quando o sol também resolvia olhá-la. Os toques amarelos que nela repousavam davam a impressão de serem feitos de ouro, as janelas mostravam cortinas escuras e pequenos desenhos se espalhavam pela construção, chamando a atenção pela delicadeza que eram feitos. A pergunta se aquilo era uma casa ou uma obra de arte passou mais de uma vez pela curiosidade do menino, não ouvindo resposta, ele resolveu não entender, somente tentar semear suas sementinhas.
       Nos primeiros dias, nenhuma alma, boa ou má, apareceu. De início, o menino pensou que os ocupantes poderiam estar ausentes e como havia muitas casas para presentear, foi ao encontro delas. Semanas passaram, boa parte daqueles que o trataram mal, se renderam e permitiram que plantasse em suas fachadas. Esse resultado poderia ter vindo do maravilhoso trabalho dos que permitiram sem recusa o agrado ou, quem sabe, por vizinhos terem elogiado o menino em conversas. E todas as casas estavam jardinadas com as mais belas flores, faltando apenas aquela que nunca abriu suas portas para desejar uma boa vinda, muito menos um gritado adeus. Ele cuidava de todos os jardins como havia prometido aos donos, que sabiam que o cuidado pararia quando a única casa restante fosse semeada, deixando por último essa que ainda não o permitia retornar para lugar algum.
       Sempre que chegava, enquanto tocava a campanhia, ficava admirando a casa que parecia um palácio. Em um desses instantes de admiração, o menino viu a sombra de alguém aparecendo na janela, mas que desapareceu tranquilamente rápido. Ele esperou algum tempo olhando para a porta, achando que iriam atendê-lo, mas ela não se abriu e nenhum barulho indicava que apareceria esse alguém para isso. Com a sua cestinha, o menino sentou na frente de onde poderia ser um confortável lar para as flores; procurava algo dentro dela que parecia não ser pego com muita frequência, mas logo encontrou. Nas mãos do menino se via uma pedra comum, média, que foi colocada sobre a terra. Levantando-se, foi embora esperando o amanhã.
       Os dias seguintes foram todos iguais: voltava, ninguém o atendia, então ele pegava uma pedra e colocava do lado da que foi posta no dia anterior. A sua devoção ao descansar as pedras era a mesma que ele tinha com as flores vizinhas; dava atenção a elas como se pudesse ouvi-las e depois dessa conversa silenciosa, ele deixava aquela rua. Alguns donos das outras casas achavam esse comportamento do menino um tanto estranho, mas como tinham coisas mais sérias para pensarem, não se prenderiam a banais pedras. Com o correr dos dias, as muitas pedras formaram um jardim incomparável aos demais daquele lugar; sua fortaleza nascia da resistência de suas "flores" e sua fraqueza se escondia no instante de que a qualquer momento, por qualquer razão, poderia ser jogada fora como se fosse nada. Até o cinza sorria naquela casa.
       Oferecida a decisiva pedra para o último pedaço de terra daquela fachada, ele olhou o terminado jardim que havia semeado na única casa que lhe entregou apenas a sombra de seu morador. Foi com um olhar triste e uma elevação nos cantos da boca que o menino cumpriu a sua promessa, entregando inteiramente o seu presente para os seus donos. Ele nunca mais retornaria àquela rua, porque cuidaria de todas as coisas que surgiram dentro dele durante aquele tempo ali, guardaria todas as pedras que encontrasse por aí.
       Os moradores nunca souberam de onde, nem para onde foi o menino que insistia em plantar suas sementinhas tão entusiasmado. Mesmo se eu quisesse, também não saberia dizer. Igualmente longe do meu conhecimento está o que os presenteados fizeram com os seus presentes. Suponho que algumas flores devam ter morrido, seja por falta do mesmo carinho que o menino tinha com elas, pela falta de habilidade dos donos ou por puro desprezo dos mesmos. Algumas outras porções devem ter sido bem cuidadas, tornando-se parte das próprias casas. Se o jardim de pedras está sutilmente como foi construído, eu não sei, mas nada disso importa. A sua preocupação aqui deve cair no que foi semeado em você e apenas isso.

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