Atraso
Imagem: "Unmade bed" (1845) de Adolph Menzel.
Um
dia desses em que se acorda tarde,
recebi
a notícia de que eu havia me matado.
Assustei-me,
porque eu era tão jovem e tão inteligente,
tinha
uma longa vida pela frente,
grandes
planos e realizações a serem ainda conquistadas.
Tal
ato foi tão repentino,
sem
aviso prévio, sem sinal aparente.
Quase
não parecia fazer sentido,
porque
eu apenas não queria acreditar.
Todos
me ligavam, me mandavam mensagens,
queriam
saber como eu me sentia,
se
eu estava em casa, no hospital ou já no necrotério,
se
onde eu estava fazia calor, frio ou um clima refrescante.
Eu
não soube responder.
Acabei
ouvindo os vizinhos na rua:
surpresos,
pesarosos, chocados e também curiosos.
Eles
diziam sobre a falta de deus, sobre a impulsividade dos jovens;
alguns
mais informados, falavam sobre as doenças da mente,
dos
efeitos da (pós-)modernidade, da virtualidade das épocas
––
“São os fins dos tempos” ––,
só
se esqueciam das dores do coração.
O
ocorrido não teve qualquer tinta gasta nos jornais,
voz
alguma na frequência dos noticiários das rádios,
nenhum
espaço nas programações dos telejornais.
Alguns
mortos vivem mais solitária e silenciosamente do que outros.
Por
essa razão, a respeito de mim, eu não sabia de nada:
que
horas tinha acontecido, de que meios eu me servi,
quem
foi a última pessoa que abracei, onde era o lugar,
será
que eu usei o meu perfume preferido,
quando
seria o cortejo entre o velório e o enterro.
Cada
um dos moradores voltou para a sua residência,
retomando
os seus cotidianos afazeres;
a
maioria dos jornalistas saiu das redações
para,
em vez de contar histórias, participar delas;
os
meus conhecidos deixaram de me perguntar,
talvez
percebendo que eu não poderia ajudá-los.
Então
pensei em meus pais e em meus amigos:
tantos
anos comigo não devem ter os preparado para isso.
Tanto
tempo também não me preparou para soprar todos os ciscos dos meus olhos.
Preocupei-me
com os nomes e as cores
que
eu tinha dado às datas dos calendários espalhados por aí,
porque
ninguém além de mim poderia pronunciá-los, descolori-las,
vencê-los,
transluzi-las...
Eu
me atrasei demais para a minha própria morte
e
a demora também responsabiliza os outros:
a
honra do meu pai e a saúde da minha mãe;
o
investimento dos meus professores e o tempo dos meus amores;
o
pesar dos íntimos, a educação para os que batem à porta,
a
simpatia para as visitas e a sala para os parentes.
Nada
a ser feito, voltei a dormir.
Amanhã
ainda há muita coisa para se fazer.
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