Pequena viagem em um breve relato
A Sorte sentou-se
ao meu lado, na direita e na esquerda, tão cuidadosamente que se eu estivesse
distraído teria pensado que este dia era o meu último e chegada a hora de ir
embora, por fim. Sem muito tempo para algo mais, a bagunça ficaria como está:
embaixo o céu, acima o chão e no meio os astros, claro, se invertendo
confusamente como sempre fizeram, do mesmo jeito que fariam se eu estivesse
aqui. Não façam disso um segredo: anunciem aos moradores daqui! Proclamem a
todos o meu antigo corpo e mostrem como eu não pertenço mais a ele, nem sequer
a eles! Aos ouvidos amigos, gritem que festejem, porque agora eu me instruí a
voar, mas aos inimigos, sussurrem que chorem, porque acabam de perder a outra
margem, tão imperiosa para que um rio se equilibre. Como a Morte ainda não
estava preparada para ir comigo, muito menos para vir a uma conversa amigável,
coube a mim o ofício de continuar a ser um fruto em maturação na Árvore da Vida.
Quando a iminência da minha queda deixou de ser os nós das raízes lá do alto, foi
que a Sorte se permitiu a descoberta pelos seus próprios olhos. Diferente de Suas
familiares, como a Morte ou a Esperança, que facilmente chegam e nos levam o
que querem, para terras sem leis, horizontes e sem fronteiras, Ela é aquela que
chega devagar, mostrando-se, de repente, na percepção dos detalhes brilhantes
do dia, na conquista do desejo não conhecido ou no olhar que se direciona aos
caminhos atrás e se nota que eles também se direcionam, irrelutantes, até a sua
precisa e atual medida. Satisfação... Eu estou satisfeito com o meu sabor
desses dias, mesmo sabendo que o núcleo deste perfume é impossível de compor a
cantata de minha ciência e, por isso, ainda o procuro; e por isso, ainda posso
procurá-lo.
Tanto imagino, pelos
ouvidos que avistam até melhor quando se enterram por debaixo das epidermes,
quanto aprendi, porque me avisaram silenciosamente e me ensinaram pouco a
pouco, que a Sorte não brinda as suas crianças por merecimento, mas diz as
lendas e os mitos que é por uma desconhecida afinidade. Mas quem dos
respirantes já não merece a redenção por simplesmente sentir que sente a
própria respiração? Em alguns momentos, eu me entristeço por meu rosto não ter carregado
traços firmes o bastante para o agrado instantâneo dEla –– é notável, quando se
anda pelas ruas, as linhas que Ela desenhou e as que desdenhou ––, noutras
fases, surge um tédio quase apaixonável em razão de haver mundos que, apesar de
cobiçados, nunca existirão ao redor de minha sombra e do ser que a produz e a
contém; entre momentos e episódios, há intervalos em que, fora a tristeza e a
tediosa amante, dou-me conta da história de mim mesmo, sendo eu o Fim e o Começo.
Não é que deixo de observar que existam vidas mais verdes, violetas e laranjas
que a minha, que parece não passar dos tons azuis, vermelhos e amarelados, nem
de admitir que, por demais, essas composições são mais próximas de um paraíso
do que as subsistentes manchas em mim, mas pude entender as decadências que
experimentei antes e que me surgem hoje como amargos chocolates, da mesma
maneira que me orgulho do inferno que me forjou, tornando-me lugar onde as
chamas são substância e a forma, o crepitar delas.
Toda origem
termina quando a madeira e a faísca se casam: é o primeiro passo da genealogia
dos universos singulares. De uns que se tornam dois, se expandem para um
terceiro ou quarto e disso se segue até quando o Infinito for capaz de nos
dizer, sem saber, eu, se somos nós, mesmo, capazes de ouvi-Lo. Cada lenho e
cada fagulha criam, ao dançarem, naturezas únicas que crescem até se
transmutarem em outros lenhos e fagulhas, para se explodirem em novas naturezas
únicas: apesar de todos saberem o que deve ser feito em tal jogo, ninguém
desvelou as suas profundas regras; ninguém sabe qual, nem o preço da falta a
ser dividido, muito menos o número de cúmplices que se juntarão à próxima
fotografia. Ela aparece aqui, em todos nós, mas depois de darem à luz que desejavam,
as fogueiras, vendo as suas criações, suavizam o calor e, assim, tornam-se
Lares. E entre paredes gigantes, sob tetos ondulados e sobre um firme chão, os
Deuses instruem as crianças sobre a grandeza dEles através da pequenez delas.
Esses presentes, que são encontrados no barulho dos olhares, nas repetições dos
gestos, nas nuances das vozes, não são entregues apenas com as pétalas do sim e
da ternura, mas também com os espinhos do não e do castigo, do mesmo modo com
os acertos e erros dos mesmos Deuses, porque está no destino dEles mostrar que
vitórias e fracassos são lábios de uma igual boca. Além de tudo isso, eu ainda
tenho algumas muitas e eternas coisas a agradecer aos Deuses que são e regem
esta casa, à minha héstia e ao meu ares, que tantos sacrifícios, às vezes
singelos, outros, pomposos, colocaram em meu altar. Nos frágeis outonos, época
em que os pequenos ouros secam e se derramam à espera dos pés alheios que os quebrarão,
sem esquecer, por gentileza, dos sobreviventes que são levados para bem longe
pelos não tão inocentes ventos sazonais, Eles me enchiam a casa de brinquedos, livros,
de amores e diamantes, desses que saem do coração, vêm a morar na cabeça e
mesmo que não os lembremos em tamanho, estão lá, transluzindo-se nos valores
que nossos dedos espontaneamente contam, semelhantes aos dias primaveris que
vivemos juntos, mas que não posso voltar, porque nesses tempos, eu era deveras pouco
de mim. Dessas brincadeiras perigosas, o que restou foram apenas os perigos
irreversíveis, porém, ao contrário das Grandes Guerras que se aproximavam, as
fantasias dadas a mim não me serviam como uma cegueira branca, mas sim para me
apontar que, escolhendo eu ser todas ou nenhuma delas, eu teria abraços divinos
que me acolheriam como os templos fazem aos desesperados. Se hoje sou o semideus
que me tornei, é porque tive Deuses que trabalharam a lustrar a minha alma o
quão bom quanto conseguiram, para que eu me deparasse com a minha excêntrica
radiação. Em particular, nunca vejo por completo os mistérios que são
planejados pelo acaso, mas acho que este, quem escreve, deu certo ou, se não,
ao menos tentará realizar o que acha. Para que a minha héstia pudesse ouvir os
meus girassóis e o meu ares pudesse ler as minhas batalhas, eu seria um dia
beija-flor, a contar segredos que em meus jardins levantam, e em outro, soldado,
a transformar lágrimas e dores em suor e raiva, porque é triste saber que minha
Deusa não ouvirá as canções que canto, enquanto o meu Deus não lerá as cartas
que conto. É justamente porque os meus Deuses me deram o fôlego e as chances, que
pude respirar com a delicadeza de uma epidemia incurável e arriscar com a tranquilidade
de um pássaro que busca pousar no horizonte.
As temporadas
de serenadas e fantasias solitariamente acompanhadas entram na película quando
ela já está elástica o suficiente para ir em direção a um outro e torná-lo
parte de si mesmo. Bem-vindo à juventude, querido Amor! Mas saiba que os
primeiros sonhos acordados de um entardecido nunca são esquecidos por ele, como
também acontece quando as últimas realidades adormecidas se libertam e os
carinhos ensolarados que eu sonhava receber só foram interrompidos por um real
eclipse total. Então, soube eu que aquela estrela maior que se desenhava em mim,
junto com todos os atares, tinha azares e lindo era o Sol Negro, mas incapaz de
sustentar uma completa mortalidade. Uma gota é o que separa a cura do veneno e
de tanto admirar o altivo, desdenhei o meu próprio caos, que alimentava os anos-e-luzes
que subiam, mal sabendo eu que era aquela nuvem disforme, e não a solar e
perfeita circunferência dourada, que oferecia, muito mais do que chuva para
esta terra se molhar, um espírito a esta fria mecânica se esquentar. Por mais
crível que pareça, as minhas mãos não se desfizeram quando colapsei o meu secreto
miolo em verdade ao Sol; em vez disso, o desci da coluna que era sustentada às
minhas costas, colocando a sua estátua onde eu acabara de marcar um rastro: é o
meu apolo, sempre fará os passados de minhas lembranças ficarem com ares de
afeição, mas quando eu espiei sinceras curiosidades sob o seu material, nada
mais perto do que as minhas aspirações apareceram. Foi assim que eu acordei das
românticas arestas e vi o Amor se despedir de mim, sem saber se aquilo que vivi
era amor por alguém ou amor pelo Amor. Por fim, cresci como quem anoitece,
descobrindo a diversão e o fado que é pintar as próprias iluminuras. Nunca, na
história desta fruta, se terá outra vez a fluidez daquela primogênita paixão,
porque ao expulsar a transcendência de tais sentimentos, são as carnes e o
sangue que colorem a surginte supernova. É um novato princípio, logo se faz
necessários imaculados algoritmos para se montar os eternos enigmas e suas
peregrinas esfinges: onde era candura que se faça rubro! E o que quer que seja
que se arrastava nos palácios celestiais, passou a caçar dentro das cidades
mundanas. Ao contrário do que os ascetas pregam, existe uma espécie de beleza
rara nessas poluições urbanas e eu, por duas vezes, que nem mesmo acreditava de
fato na existência dessas paisagens, apesar delas aparecerem aqui e ali em
todas as calçadas, e improvavelmente ser escolhido para compô-las, fui envolto
e eleito por fumaças menos justas do que aquela moeda de duas caras. Elas germinaram
quase do mesmo lugar, mas em distintos calendários; eram como peripécias de uma
aposta que eu havia semeado com o Diabo: caso eu conseguisse a desublimação dos
fantasmas, induzindo-os a afáveis presenças, queimaria, ele, as minhas palavras
e a partir de então, se ouviria de mim a fonética dos Homens, porém, se eu
fizesse dos gregários mais e mais invisíveis, ao ponto de cumprir a maior e
mais certa de minhas teóricas profecias, venceria o dito vencido e, como
mérito, ganharia os campos inférteis para as promessas seladas com beijos. Quando
dei por mim, eis que já haviam se arrastado dois meses e não precisou de mais
uma boda para que a primeira fumaça se dissipasse às minhas memórias. Antes de
chegar a essa entropia, me perdi em algum segundo entre o anúncio da minha
maldição, dita como quem tem a certeza do término –– e eu tinha! –, e a minha
assinatura no sim ao começo. Aí, talvez, é que eu tenha errado: o não poderia
me ter evitado muitos desgastes fibrosos importantes para se alcançar as idades
maiores e, quem sabe, a companhia, os doces e demais coisas tenham me feito uma
pessoa melhor. Nenhuma boba criatura veio tirar o prazer revelando isso, mas
independente de se ter alegrias ou desventuras, eu tive que sair da Casa dos
Dez, quando, do lado avesso, avistei no canto do ciclo, o Diabo lagrimejando
pela perda do jogo. Os leves ferimentos não submergiam as gargalhadas que as
certezas derramavam em minhas atitudes: ele, humilde e humilhado, me pedia para
tentar outra vez e eu, ingênuo, aceitei, com a confiança de alguém que, ao
abrir a porta, sabe que não gostará da surpresa visita. E aconteceu, de
repente, como uma miragem que se permitiria entrar, a segunda fumaça
construiu-se diante de mim. Tamanha era a perfeição do cenário que os aromas costuravam
que eu, em menos de uma semana, já pensava que poderia salvar os anos que nunca
viriam e os povos que se condensavam naqueles predicados. Quatro músicas contínuas
de declarações e sorrisos tocaram e, a partir daí, os harmônicos instrumentos de
outrora começaram a desafinar, até que na sétima apresentação, os
instrumentistas se rasgaram de seus papeis, abandonando as cordas e as chaves a
lamentarem sozinhas. Houve silêncio; desde quando eu estava preso aos ecos sem
retorno, houve apenas silêncio, e me libertei da segunda fumaça quando ela me
libertou das suas mentirosas magias, evanescendo tão foragido quanto a sua
erupção. Penso que existem modos mais nobres de ser covarde, mas as mentiras de
alguns, mais do que as suas verdades, dizem melhor a respeito das intenções do
que dos medos. Assim eu soube que nunca tinha tido nada além de coisa alguma
daquela fumaça, nem partículas inaladas ou qualquer desmaiar. Talvez pelo
decreto de ter sido o último ensaio, tentei correr para ainda guardar algum movimento
das imagens, porque apesar de ambas as supernovas terem químicas similares,
essa teve as sequelas mais esperançosas, mas, afinal, aceitei a minha preciosa
conquista, enquanto o Diabo se conformava com a sua definitiva perda. Ninguém,
a não ser eu, poderia provar de modo tão belo, o quão desonesto e bélico é as
colisões e as rendições, as entregas sem destinatários, os mortos e os feridos,
dos votos que os amantes anunciam ao se entrelaçarem e, reconhecendo isso, os
campos devastados da aposta foram dados sem demora. Longe de ser um pagamento
infortuno, a aridez deste solo faz próspero os demais e em rápidos instantes, já
me reconheci como pertença do deserto, porque ele sempre foi meu e por isso,
agora, eu posso ganhar os indesbraváveis impérios.
Nesse ínterim, onde estou é, ainda, o
âmago das colinas que o meu trabalho irá erguer com a argila, a água salina e a
paciência, minguando essa quase planície –– embora com tantas depressões ––,
enchendo-a de valiosos relevos para quando as asas do meu ângulo forem
consistentes a sustentar o meu pessimismo corpo, eu ultrapasse os limites dos
limites e me lembre, saudosamente, mas sem nunca ter me esquecido, do chão que
me deito e o faço de lar, temperado lar. Todas as coisas se desmembram em durações
e se as imaginarmos divididas em dois continua,
para melhor compreendermos, sem nos atermos as pequenas eternidades e às
grandes finitudes, enquanto decorre a disposição em uma, o cansaço em outra já
me espera. Mas como essas mesmas coisas se cumprimentam pelo relógio –– e tudo
são consanguíneos e números, em que o norte está no leste e estes no sul,
formando juntos o oeste e assim do início ao para sempre ––, não existem
querelas entre elas, apenas os ponteiros descompassados que denunciam as canseiras
que trazem e as euforias por aquilo que o desejo já trouxe do porvir. E eu, que
por muitíssimo tentei fugir dos clichês e dos acertos, sou o centro fixo dos
ponteiros e de suas respectivas setas, e caio na evidência de que não é fácil, até
porque a única blasfêmia sem um herege é que assim seria, mas também não impossível,
tanto que ainda aqui estou. Dentre o zero e o um, muitos atos e desatos hão de
ser lapidados, como os momentâneos proêmios de preguiças que ardem as visões e
quenturas que escorrem sei lá se do peito ou do coração. Uma fragrância que
mesmo há horas em nossas sensações, um bocado gelado que se desfaz na boca
permanentemente, que não deixamos a nós de presenciá-la, que não deixamos a nós
de vivenciá-lo, é isso que se parece a quietude das ferramentas ao soltarmos as
causas e nos refugiarmos nos efeitos.
Festejei assim
como o que holocausto e holocausto assim como o que festejei. Aquele corpo que
não pode mais se chamar de meu, fez-se ascendência e, ironicamente, é um pouco
deste que teve a experiência da altura. A cerimônia fúnebre, que se espalhava
de animados para inanimados semelhante a neblina nas longas noites, isto é, ao
se dissolverem no breu, indivíduos e coisas voltam se descortinando as janelas
e apercebem que elas sim é que foram cortinadas durante o sereno, realiza-se no
interior deste novo organismo na ausência do meu anterior. Todos testemunham,
dos amigos aos inimigos, em menor ou maior grau, mais cedo ou mais tarde, tão
quanto pelas notícias ou meramente pelas suas implicações, que corro como um
rio sem margens e que me voou, flutuando, nem muito superior, sequer muito
inferior, porque, afinal, o curso das correntezas agora é um tanto mais que
repouso, uma já alameda de pedregulhos, são as próprias ondas esculpidas nos
batimentos de um vazio a outro e os meus braços ainda estão a se movimentar
como e com os astros.
A Sorte
levantou-se, sem nenhuma lasca de fadiga ou desapontamento, e mostrou um
sorriso que me falava “nossas visões e nossas aortas se cruzam formando uma só
história; a Árvore da Vida que não sou eu, torna-me e logo torna-te, mas nada
disso quer dizer que somos o mesmo fio de um mesmo enredo, tanto ela comigo,
quanto eu contigo. A qualquer dos dias, eu posso vir a faltar, você pode vir a
não mais me ver, então não dê a licença comum a um pedido, o deixe que não
passe, o tranque à porta do seu lado, lembre-se: quando essa pandora abrir, me
enxergue no fundo que é transparente; a curva que existe em toda reta, o
belisco que falha em todo afago. Não é que não estejamos lá, talvez seja apenas
um pouco de timidez da nossa parte e, da sua, indisposições dos globos
oculares”. Quem sabe como um último ato, o Seu rosto refletiu o meu e sabendo
eu do perigo dEla me desaparecer, escapar da moldura oval de minhas vigilâncias
e nem me mandar cartas contando sobre as demais hospedagens, balancei os dedos
da erguida palma para mostrá-La todos os velames que me puxaram com os Suas e outras
auras para cá, ao mesmo tempo que A agradecia. Eu não poderia querer nada
diverso do que foi; nada poderia ser diverso do que foi: a brisa que sempre se
esquiva no paladar, as feições que se desentendem e não se dão bem, a
ignorância dos Deuses, os amares esfumaçados, os afazeres árduos que, de uma
maré a outra, ficam rarefeitos por vezes; enfim, todas as folias, dessas com
februras mais lamentosas às mais risonhas, que movem os redemoinhos a girantes,
porque sou irmão de tais milagres e, como eles, eu não poderia ser o que sou a
não ser tendo sido o que fui, naquilo onde tudo de respostas podem ser dadas e
a figura que respondo sou eu. São os efêmeros que não passam, os recordados, e
não as recordações, que dilaceram um sentido ao rodopio. Sim, ainda que vitral
e mutante, um sentido. Relato este que não foi inventado por mim, mas me
contado por Ela para que nunca me perca que il
était une fois, a Sorte e eu.
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