Carta aos três povos
Meu sangue caiu no chão; além das gotas,
as muralhas se abriram como grandes portões para a multidão em êxodo. “Quem são
eles?”, eu me perguntei tímido e inexperiente, mas nenhum dos indivíduos que
constituía aquelas nações parou para me dizer o que estava a acontecer, do
porquê das paredes terem abraçado tão facilmente as suas línguas, as suas
religiões e sacrifícios. Admiti que permanecesse, apesar de saber que as
moradias, se ou quando elas se despedirem, deixarão marcas gritantes no gélido
concreto deste país estrangeiro que aqui fala. “Não se preocupe”, dizem, assim,
as minhas próprias dores e alegrias. Porém, há segredos divinos que as tais
divindades desconhecem? Da afirmação à dúvida; do inamorável ao compromisso; do
não desejável à fome...
Por um pedacinho de eternidade, eu me
achei o leite e o mel de uma prometida terra, que era o meu próprio ser, para
os seus povos; eu tive a certeza que a magia, o holocausto e a redenção seriam
exercidas no altar do meu peito ao mesmo tempo e em harmonia – não que neste presente
eu não tenha essas bandeiras nas minhas hastes, no entanto, dentro das
fronteiras existe a Guerra, carregada das iguais letras do meu nome e dos
idênticos olhos esverdeados, com pele hostil e a forma de passado e medos. Eis
o meu Diabo, a minha confusão, a minha loucura! Na única pátria vivente,
implodem algumas descomunhões que são comunhões, que continuam a ser o lugar de
origem, contudo outros espaços; são como a água e o óleo que não se misturam, tão
palpáveis aos olhos, entretanto, ocupantes da mesma percepção. Todo o nítido
líquido que me tornei até hoje ameaçado por cacos de poeira que bateram em minha
vida muito antes do que ontem; foram eles que repousaram tantos defeitos em
minha maneira de caminhar. O que os seus povos sussurraram em seus ouvidos,
quando chegaram perto do meu núcleo, pareceram sentenças; até onde o dito
solidifica mais do que o não-dito? Eu me senti muito fraco e não menos
infantil: temi além do temível e descobri as invisíveis forças que poderiam transformar
este território em um meio desconhecido para seus próprios habitantes.
Quando tudo se fez contrário, os
equinócios e solstícios, que outrora eram tão cônjuges, pareceram mais
distantes do que dois corações em dois diferentes corpos; ainda que minhas
pernas estivessem fundas o bastante para se entregar a crescer ao céu e
florescer, eu tive medo dos sonhos que não poderia controlar. No instante em
que as lágrimas vermelhas foram apresentadas ao sabor agridoce do chão,
choraram comigo, talvez tão mais piedosas pela minha situação do que viria a
ser o meu destino – este que parece ter se desenhado sem minhas mãos. Para onde
eu, e agora os meus povos, vamos com isso?
Eu quero ser o Deus e a Deusa para que
minhas casas sejam as igrejas e sinagogas e que a natureza seja, também, o meu
rosto; mas sou apenas um humano perdido na sensibilidade dos sons, o pequeno assustado
demais com o sorriso. Do fundo, na parte mais escura da minha cabeça, ecoam
lembranças do outro lado, das épocas em que minha flora estava morta – “se
ninguém bebe de uma fonte impura, por que ele haveria de permitir que os seus
filhos te bebessem?” –, mas mesmo os exércitos inimigos destruindo as
estruturas da minha alma, ela nunca criou tanto ânimo quanto agora; a primeira
das batalhas já nasceu e, apesar de pensar, às vezes, que o meu querer é
amaldiçoado, desejo que os seus povos estejam comigo, porque tudo isso é como
um exorcismo para mim. Além do querer, eu sei que posso ser o salvador deles,
recebê-los como histórias distintas que se misturam em mim e, sabendo que tanto
eu quanto você trazemos fracassos e vitórias anteriores, também sei que posso
tudo contigo, se você me fortalecer – como eu também te fortalecerei! Nunca me
arrependerei de ter aberto os meus campos para que os seus povos fizessem morada,
porque os deuses me disseram que as suas sementes, escolhendo as minhas terras,
criariam jardins suspensos de conteúdo por todo universo. De todos os aprendizes
que tive, o amor caminhou através da sua emigração; de todas as esperanças que
poderiam ser escolhidas, eu escolhi os três povos. Porque eu me lembro das suas
palavras e elas não são vis, então pare de buscar, porque a sua força reside
aqui, apenas se permita me permitir.
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