Sacra saúde

 

imagem: "911" da Lady Gaga. 

Não é importante, nem interessante, saber a hora que levantei da cama a me preparar para ir até lá ou quanto tempo permaneci ali, naquela fila, até ser (se é que fui) atendido. Aliás, nesse dia, eu nem tinha me preparado para ir a um posto de saúde; decidi de última hora, de supetão, como se soubesse –– e sabia –– o inferno que seria toda aquela espera. Durante a caminhada até chegar, eu me pegava perguntando muitas coisas: no que eu estava fazendo; se eu voltaria a tempo de pegar a novela da tarde; no porquê estava indo, se achava que o meu problema não era tão urgente assim; será que eu apertei o bastante a torneira da pia do banheiro para não pingar; eu teria animação de continuar a ir em outros lugares para melhorar; dentre outras perguntas. O meu caso não era uma perna quebrada ou braço, nem uma infecção ou algo do tipo, era a alma que doía; sim, a alma, doía tanto que a dor chegava a virar carne. Apesar de ser um mal imaterial, eu mesmo tinha conhecimento que precisava de cuidados.

Eram tantas interrogações que quando dei por mim, eu já estava lá. No momento em que percebi que o pequeno local estava com um número consideravelmente grande de pessoas, um nervosismo leve começava a correr pelas minhas veias. Eram quatorze. Claro, tirando os vários funcionários e outras pessoas que estavam de um lado e de outro com objetivos diferentes daqueles que queriam o encaminhamento para a cura de seus males. Tornei-me o décimo quinto ao me colocar atrás de uma senhora miúda e, até então, silenciosa. Na verdade, o local todo estava muito silencioso; parecia até que tudo ali parou para prestar admiração ao novo aspirante à monge hospitalar. Reparei depois que a cada pessoa a mais que chegava naquela reunião, o mesmo silêncio se instalava novamente, como se dissesse “seja muito bem-vindo! tenha uma paciente estadia”. Como o posto não tinha tanto espaço, a fila se estendia do lado de fora, em uma espécie de quintal arborizado de uma casa interiorana. Logo que cheguei, sentei no último lugar do banco de concreto que dispunha ali. Ao meu lado, mas um pouco acima da minha cabeça, um velho ar-condicionado trabalhava fazendo um acanhado, porém persistente, barulho. A água que pingava dele caia não tão perto ao ponto de me molhar, mas também não tão longe que eu não pudesse percebê-las. Fiquei, então, observando os pingos como se, a qualquer momento, eles pudessem fazer algo de diferente do que simplesmente a poça que formavam. Talvez eles pudessem mudar a rota da queda, fazer curvas antes de se desfazerem no chão ou apenas dançar. Não aconteceria, obviamente, mas havia algo naquilo que me prendia a atenção: primeiro, achei que aquela máquina era eu chorando; em seguida, achei que quem caída em forma de gotas era eu; aí, por fim, achei que a água caída, de fato, era eu.

Acordei dessa espécie de transe –– passaram-se só alguns minutos –– e logo os meus olhos pularam para as gordas formigas vermelhas que iam da parte concreta do quintal para a parte onde havia gramas, flores e árvores. No mesmo instante, uma amiga de longa data da senhora miúda à minha frente acabava de sair de sua consulta quando foi reconhecida. Não a tendo encontrado há um bom tempo, iniciaram as conversas habituais sobre como estavam, como andavam as suas vidas e a de seus parentes. As vozes das duas serviram de indicação de que o tempo de silêncio pela minha chegada tinha acabado e de aval para que os outros retornassem aos assuntos que antes falavam. Sem entender direito sobre o que conversavam, eu notei, pela primeira vez desde então, cada uma daquelas pessoas que comungavam comigo da mesma espera: fui, assim, distinguindo os vários tons de vozes que se encaixavam com quais rostos e com tais corpos. A maioria das pessoas ali eram muito mais velhas do que eu; duas ou três tinham uma diferença de idade menos significativa, mas não era tanto também. Boa parte eram mulheres, senhoras, que folheavam revistas trazidas de casa, que faziam crochê, beliscavam uma bolacha ou balinha; enquanto os homens, senhores, de tão poucos, se juntavam e agiam como se estivessem em uma mesa de bar. Sendo ali um posto de bairro, era certo que todos ali se conheciam –– apesar de morar nas proximidades, eu era um estrangeiro entre os conterrâneos. Voltei para as formigas: algumas delas carregavam comida, outras conversavam entre si com suas antenas ou se entretinham com os arredores, porém todas enfileiradas. Como nós.

Ergui a cabeça de olhos fechados e endireitei as costas na parede. Um vento leve veio e afastou para o lado a sombra que estava me protegendo tão fixamente. Eu podia sentir uma ligeira quentura sobre as minhas pálpebras e quando as abri, me vi embaixo de um enorme ramo de árvore que, agora com o vento, se mexia e mostrava um sol escorregadio. Era como se o sol brincasse comigo tapando os meus olhos com as suas mãos ensombradas e depois reaparecesse, rápido, dizendo “achou!”. Eu já estava cansado; não só de esperar, mas de tudo. Na entrada do posto, um jovem médico apareceu apressado, olhando para os lados, no que parecia a procura de alguém ou alguma coisa; senti uma lasca de esperança ao imaginar que a espera duraria menos do que eu supunha. Ao contrário de mim, as senhoras e os senhores aparentavam já saber que a aparição dele não significava nada além de que ele tinha aparecido, porém, elas, as senhoras, ficaram alegremente eufóricas com a presença do médico. Disseram quase em coro afinado um “oi, doutor (como não lembro o nome dito por elas, invente um que seja jovial e sério ao mesmo tempo para colocar aqui)”. Ele retribuiu o cumprimento à fila e retornou de onde veio, deixando para trás os comentários apaixonados do quanto ele era uma gracinha, de como era um bom profissional e do tanto que gostavam dele. Eu as entendo, ele realmente era bonito, porém, sob a forma de um lindo rosto, a minha esperança havia me enganado de novo. História para outra história.

O sol já estava alto no céu. Havia se passado bastante tempo e o meu lugar na fila tinha mudado: a árvore que me fazia sombra estava a poucos passos de mim, o calor me espetava por todo o corpo. As conversas aleatórias e animadas gradualmente foram se tornando mais sérias e densas. Era falado sobre o porquê estarem ali, os males que os trouxe a procura de uma ajuda médica, depois sobre os parentes que tinham os mesmos problemas que eles e os variados fins que levaram; também os parentes que tinham problemas mais graves e distantes dos deles eram usados como alimento para os assuntos. Ao passar esses pontos, todos eles se misturavam e se transformavam em explicações turísticas encarnadas nos próprios membros e partes e espaços da corpulência dos conversadores. Ouvindo de fora, o que parecia era que todas aquelas pessoas disputavam para provar quem era o mais enfermo dali, mas sempre que alguém achava que conseguia alcançar o limite do adoecimento saudável, outra pessoa se coloca a um passo a mais. Se as paredes daquela repartição pública, desgastadas como eram, pudessem falar, certamente diriam a todos aqueles falastrões que essa briga era quase infinita.

A essa altura, os meus ouvidos estavam tão sensíveis que mesmo longe do ar-condicionado e das formigas, eu podia jurar que ouvia o barulho dos pingos d’água e dos passinhos em marcha como se estivessem dentro de mim. Os meus olhos cansados ficavam cada vez mais doídos com a luminosidade, o meu suor começava a perder o controle de si. Parecia que o tempo que tinha passado tão vagarosamente até então havia parado de verdade; todos aqueles barulhos, imagens e cores, temperaturas, todos os meus pensamentos que envolviam tudo isso e mais tantas outras coisas, faziam o ambiente diminuir, ainda que ao ar-livre e mesmo já sendo pequeno, a cada respiração. Eu estava em uma claustrofobia sem nada me prendendo, mas preso por todos os lados; em um lugar com todas as direções para correr, mas sem o poder de sequer me mover; onde eu estava se podia gritar para que todos ouvissem, mas com ninguém para me ouvir. A vida naquele local estava suspensa, porém eu conseguia ver, pelo canto dos meus olhos, as bocas, os bafos, as gotículas de saliva se movendo continuamente. Aquela costura de assuntos sobre doenças e morte piorava tanto o meu estado catatônico que, dormente da minha própria pessoa, eu não percebia o que estava acontecendo comigo, quando, de repente –– atchim! ––, espirrei.

Calaram-se.

O que se podia escutar era somente o mecanismo dos olhos de todas os seres animados e inanimados se virando para me encarar. Com uma entonação que oscilava entre a inveja, o medo e a sinceridade, as senhoras e os senhores disseram “saúde!”, agora sim em total coro.

“Amém!”, eu respondi.

Comentários

  1. Sempre me pergunto o que foi feito de você quando entro no site da Fafil e vejo seu nome na lista dos prováveis formandos... Nos últimos anos ele sempre esteve lá com o percentual do curso quase concluído. Não encontro seu Lattes, mas tenho curiosidade de saber o que aconteceu com um ex acadêmico tão dedicado. Espero que esteja bem. De uma ex colega de curso.

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