Entre parênteses

* Imagem: Anna Varney Cantodea, da banda Sopor Aeternus & The Ensemble of Shadows

       Eu vivo em um tempo que não passa, em um ano que talvez teve começo, mas nunca um fim. Apesar de tudo ter mudado de lugar, todas as cores parecem as mesmas, como acontece com todas as palavras de todos os livros depois de lido o dicionário: nada mais são do que tristes repetições em muitas variações. Parei de fazer o que eu estava fazendo para coisa alguma ser feita. A vontade de comer a vida já não existe –– a fome passou! –– e mais nenhum alimento parece ser capaz de me fazer ver novamente o meu reflexo temperado na falsa porcelana. Qual mensagem tal anu me traz amarrado aos pés, ao mesmo tempo que me cobre os olhos com sua cauda? São insetos que desbravam caminhos pelo meu corpo virgem de mim mesmo: as patas fazem cócegas doloridas, os pequenos dentes sangram a pele, substituindo o meu quente sangue por uma baba igualmente quente, porém venenosa. Havia muito tempo que eu não me sentia dessa maneira, porém, as outras vezes foram ensaios, brincadeiras de mau e doce gosto; as surdas, cegas, dementes sensações eram atuações melodramáticas que eu deixava cair para que, quem sabe, um dia, eu as encontrasse e me culpasse. Tal dia em todos os segundos. O divertimento, nesse caso semelhante a um fósforo que quanto mais queima mais se aproxima dos dedos que o acenderam, se tornou um rosto sério. Os meus dedos se carbonizaram. Assim, as mínimas eróticas que o cotidiano me beijava a alma evanescem como algodões-doces entre a língua e o céu-da-boca: as minhas forças falham, se engasgam e se tornam impotentes diante do corpo nu do existir –– é um homem de pé que caminha. E eu, que tanto quis aquela maciez dos músculos, aquela rigidez dos passos, os mares e as areias epidérmicas dos planetas encarnados, tenho apenas as pegadas e os perfumes metafísicos de algo que está sempre à frente; e eu, animal pernicioso que persegue o seu destino infinito, quando vou lhe engolir, depois de ligar todos os tracejados que você deixou, acabo por engolir a mim mesmo. Está é a maldição e a sarna de minha história e o que me resta, então, é simplesmente me coçar e me amaldiçoar: eis a filha do homem e da mulher! Eis o filho do homem e da mulher!
       Como nunca antes, eu descobri algo novo em meu próprio corpo. Que terrível foi a sensação –– senti nojo de mim mesmo pela primeira vez ––, tão ingênua e profunda sensação. Eu soube como os descobridores das terras continentais se sentiam quando viam pisar em suas casas indivíduos que morriam como deuses estranhos, enfim. Os meus olhos me contaram que eu cresço como a sala de uma genealogia familiar completa, tanto para o alto e o baixo, quanto por todos os pontos cardeais; uma corda instrumental que ao ser esticada demais se desafina. Eu sou uma floresta que vai se desfazendo aos poucos, sentindo o que parece ser estradas escorregarem pelos meus campos elísios; as minhas folhagens, encurtando-se desde o último dia de minha juventude, caem por todos os cômodos como se não tivessem forças próprias para permanecerem uma atrás da outra, uma do lado da outra. E de todos os meus orifícios exala uma oleosidade que em vez de ajudar no encaixe entre o horizonte e o dia seguinte, o que acontece é a erosão dos exércitos, fazendo-se erguer a timidez dos olhares baixos e trespassados. Até nisso a minha fraqueza é mais forte do que eu: os meus membros doem de um modo imigrante, eclodindo desenhos indesejados, relevos fantasmas, ao ponto de me fazerem tentar me mutilar, me torturar, me dizer adeus. Os espinhos que sempre saem do caule que é o meu cadáver aumentam junto com os meus medos e, ao tentar correr, desfaço-me em oceanos, em atrasos, em derrotas. E corre sobre mim a ansiedade que, como um sorvete sem gosto, escapa do estômago e da espinha e se espalha por todos os cantos de mim.
       A paz celestial em vida é aquilo que chamam de lei –– dos comuns e não dos juristas. Longe estou disso tudo, longe sou disso tudo; são outras cidades, outros povoados das quais nunca pertenci: andando pelas multidões, eu faço parte delas, mas elas nunca fazem parte de mim. Um lugar tão emérito e leproso, tão alucinógeno e rarefeito. Pouco a pouco e mais e mais, todos os elementos que chacoalhavam no meu ar foram sendo apagados da memória do meu coração como os objetos sob os tecidos de poeira: cobriram as estantes livrescas, a poesia, as minhas articulações e pensamentos. Foi nesse dia, sem hierarquia e sem data marcada, que eu comecei a sonhar mais do que respirar. Nos sonhos, muito mais do que represas abertas para as utopias triviais, o que nos prepara a cama é a certeza de o mundo caber ao redor de nossos dentes. Adormeci no chão como quem descansa para sempre, porque nada sonhado nos machuca, a não ser os seus despertares, e aqui mesmo fiz morada. Igual a uma moeda caída do bolso propositalmente furado pelo seu próprio dono, eu sou abandonado por tudo aquilo que me fez sobreviver. Nem ao menos a dignidade das mãos calejadas eu tenho e, por isso também, a minha alma se caleja: são martelos que atingem as falanges e não os pregos; os bisturis que cortam as gargantas e não os cânceres ou as barrigas trazendo novas esperanças antigas. Sem poder pagar pelos preços das coisas, os meus vícios se enveredam pelas mais abissais regiões, constrangendo o verdadeiro valor delas e as únicas direções para seguir ou evitar são os prazeres e as dores e nada mais existe. Pesam, portanto, as carnes molhadas –– é a preguiça pedindo licença –– e como areias que caem nos olhos e deles suam lágrimas manchando as fibras da roupa por alguns momentos, elas parecem querer se mover, mas também estão empoeiradas. Ainda que os meus olhos desejem proferir os palavreados silenciosamente; que as minhas mãos desejem escrever as profecias internas; que minha curiosidade deseje derramar leite sobre a cerâmica enegrecida, sentado, eu, sou um inferno cheio de boas intenções e a minha imaginação se contorce onde não consigo. Aumentam os papéis sobre as mesas que me chamam, pedindo que eu os compreenda, mas eu já não me reconheço mais, nem mais sei ler as estrelas –– turvos são os nomes que o amanhã tem para mim. Diante de tudo isso, o seguir das coisas não cessa e sem trégua parece trazer consigo a sombra da morte sempre à espreita: eu morro mais quando penso no sono dos meus portos do que no meu próprio. É por ser tão real que quero me desviar, porém acabo por laçar os meus cuidados em ouvir se os fôlegos ainda vivem. Ainda vivem. Ainda vivem. Ainda... Esses círculos, desenhados com os carvões cinzentos, são como traças que interrompem o leito dos pensamentos e em vez de navegar no que é preciso, navego no que não é preciso. E os meus limites se dissolvem: as enxurradas mundanas me preenchem e me enterram. “Descanse em paz!”, dizem as batidas dos meus dezesseis ou dezessete anos nas portas e portões por onde passo, entalhando-me como as baquetas que acordam os tambores marciais em um carnaval fúnebre qualquer. E sobre os meus ombros, carrego o jovem corpúsculo que ainda sim me é íntimo, apesar de também continuar a envelhecer. E a cada quando mais casmurro, tenho vontade de voltar para trás das cortinas e mascarar o rosto com a quietude e a camuflagem.

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