Inmundo

       Mais uma vez me coloquei em caminhos que não consigo mais suportar. Ainda sim, sigo com os pés sobre a areais movediças e o chão me percorre como a boca que, devagar, saboreia a fruta doce e molhada que é o amante. Não é alguém, mas algo –– a novidade do mundo! Ela é feita de pão, de vinho e de humor e sem as suas migalhas, os seus bagaços e os seus beliscões, o mundo, esfera minúscula, esbranquiçadamente transparente, parece escorregar de minhas mãos. Oh, deus, como é trágico! E tudo –– tudo, tudo, tudo –– ao seu redor se estilhaça, principalmente eu. Fica ali, a esfera imponente, intacta, uma virgem de pernas abertas, mas sem ninguém para habitá-la com olhares. Mas não é preciso, pois pobres somos nós, carentes de sapatos para proteger os pés, de bolsos para guardar as mãos e as armas, de palavras para imitar o silêncio, da morte para entender a vida –– sim, da morte para entender a vida, porque não se vive a vida, se morre a vida. Isso basta, nada mais importa...
       Diferente de mim, a lagartixa, que vem me visitar em casa todas as noites, sabe o que é ser lagartixa. Ao menos, ela nunca se queixou comigo do contrário. Mas mesmo que não soubesse, ainda sim ela vive sendo o que é. Já eu, vivo sendo o que não sou, ou melhor, vivo sendo o que não sei e por não saber, talvez, eu precise tanto desse amante. Assim, torno-me sua mulher e ele o meu homem –– o mundo, o novo, o êxtase, o vício, o gozo, o luto. Se antes os pedaços meus comungavam com os outros de um mesmo lugar que é tudo, a olhá-lo em sua infinidade, hoje, ontem, amanhã e sempre, eu os piso, me corto, os sujo com meu sangue imundo, apenas para tocá-lo com os dedos; apenas para lhe lascar um fiozinho de pele que seja. Não tenho mais dedos, ele nunca teve pele. Nada é mais real do que a angústia: o que fará a pequena grande esfera sem alguém para jogá-la e fazê-la girar? Ao ensaiar o nosso casamento, sou eu que é pego e que gira sem atrito.
       Eu sou um autodidata: componho quadros, rejo poemas, pinto canções, atuo orquestras e canto esculturas. As minhas mãos esguias são naturalmente hábeis sobre as cordas do piano, fortes para os teclados do violino, do violoncelo, do cavaquinho, da mesma maneira que a minha voz dança desde a ópera mais alta ao samba mais tímido. Meus lábios beijam a boca das línguas: sou mais do que esperanto, sou todos os idiomas em meu corpo que é espaço, a natureza em leis, sua tecnologia –– engenharias. Nesse interim, a minha alma se faz tempo, as leis na natureza, artesanato e artesão –– arquiteturas. Se “a lagartixa ao sol ardente vive e fazendo verão o corpo espicha”, é a noitinha que me espreguiço e verdadeiramente acordo para as coisas. Eu descendo das flores noturnas, damas-da-noite, que se alimentam do sereno e das estrelas, por essa razão, eu invento tudo e entendo tudo quando o escuro se levanta mais densamente, como atmosfera mentirosa onde todos sabem os fatos. Eu minto falando a verdade e sendo sincero, eu minto. Todos os algos são inventados, todos os algos são criados, todos os algos são compreendidos –– tenho tudo em mim... Mas nenhum fora de mim.
       Diante disso, os filhos autênticos e reais se perguntarão com o barulho dos gestos: “com tudo isso, por que ele nada faz?”. Sou o bastardo que se senta na mesa da santa ceia, o vagabundo que vaga pelos fundos dos países, dos bairros, das estranhezas, sem sair de casa. E os meus olhares vândalos percebem, por exemplo, que há apenas uma diferença entre o religioso e o assassino: a bala do revólver que abraça o peito não se dá com o mesmo amor que a mão que se entrega na lua-de-mel, aliás, ao sol-das-três, para os pregos à crucificação. Ainda que haja sacrifícios em ambos os casos. Ainda que os corpos, os sangues –– o cardápio –– seja entregue aos clientes por direções diferentes: o fadado esquecimento; a lembrança eterna. A verdadeira caridade é essa: não deixa rastros, quase como se não existisse; um crime perfeito. Pêndulo entre a imortalidade e a finitude. Seria também o assassino um caridoso? O que sei é que não tenho dinheiro suficiente para carregar os instrumentos, nem para amarrar as bandeiras nacionais e as ferramentas de trabalho –– ciência e arte –– nas costas. O mundo corre, corre com pernas largas, e eu sempre atrasado preciso seguir logo quando penso chegar. É a miséria que não se mistura à riqueza do impossível. O sonho tem forma de ferrugem e osso, quem de nós escolhe quais de nós serão ruídos e comidos?

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