Pintura mal-dita
Eu sou uma linda pintura envolta em uma
moldura barata. A minha existência parece insistir como os dedos invasivos em
uma carne proibida: tocam e brincam de mal gosto com as feridas naturais que
todo corpo humano carrega. Frescas são as minhas cores, florais, aguadas; são
guaches cobrindo a vida infantil –– mas ainda sim tristes. Tristeza não é
choro, nem soluço ou cegueira, é um verniz transparente sobre as telas e eu sou
transpassado em todos os meus painéis. Foi assim que as vozes da minha cabeça
escaparam e agora eu não consigo viver sem elas –– epicentro de minhas dores,
guardada pelos meus oceanos e que canta o rouxinol do peito. São as
primeiras e únicas vezes em meus movimentos que me torno homem, deixando-me devorar
pelas sereias que voam em volta de mim. E nas termitências dos dias, claro, há
aqueles que nos humilhamos e outros que somos exaltados, porém, apenas ontem
soube que, apesar ser uma linda pintura, eu tinha molduras baratas. Ao menos ––
ao menos! –– uma linda pintura!
Quem me espalhou nas superfícies, me deu forma ao colorido e me entalhou
com pinceis, foram arquitetos e pedreiros, nem os mais, nem os menos, sábios;
nem os melhores, nem os piores. No fim dos seus expedientes, eles comiam música
popular e bebiam poesia de todos os tipos e desenhos; às vezes, talvez mais
comum do que eu possa imaginar, havia alguns tapas, murros, mas pequeno demais
para numerá-los, os matizava: eu fui a pintura rupestre de minha história
sanguínea. Mas se o sangue é o rio que corre pelas nossas vísceras, inevitável
será as voltas que nos levarão para além das fronteiras; então me fiz
transatlântico e atravessei a rua (ainda que eu não quisesse, isso nada importaria).
Adulto, nem Deus, nem o Diabo me têm: estou brasileiro! A minha boca,
acostumada com o dialeto hereditário, se move de um jeito engraçado: sente o
gosto de abacaxi com sal quando encosta a terra nos lábios. Igualmente, os meus
dedos atrofiados dançam ao estar diante de letras tão curvadas e ficam tontos
de surpresa; já os ouvidos ensurdecem ao tatear tantas canções indecifráveis e
novas. Meu português, portanto, mal-dito, mal-escrito, mal-ouvido, tenta
traduzir a língua que me fala como idioma. Impossível –– assim como é
impossível uma imagem falar e compreender. E eu sou uma linda pintura envolta
em uma moldura barata.
Estrangeiro. Estrangeiro do mundo. Nauta distante das mesas parentescas
e também ignorante das gramáticas leis, dos ortográficos signos e dos fonéticos
encantamentos da brasilidade, o que me resta é a regionalidade goianiense, por fim;
porque antes da descoberta do Brasil, eu já havia estado Goiânia, depois de me
ter divorciado da família. Mas nem isso me resta em lembranças costuradas com
fios de tinta; elas não são anhanguera o bastante para manusear a água e o fogo.
Antes de tudo, antes até do início de tudo, o primeiro país que pisei –– ou fui
pisado por ele –– tem o som de Eu. Sem língua, sem moldura, apenas eu, linda
pintura.
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