Mesinha pequenina

I

       Para o gigante, certamente, a corda é um delicado fio usado para limpar os seus tão grandes dentes, mas para a minúscula e magra alma que sou, tudo de mais pesado, íngreme e embaraçado ela me parece. É também muito convidativa, com suas fibras escorregadias e aderentes: aparece na pele como um pelo, uma dor, e quando vamos puxá-lo, arrancá-la do lugar que não deveria estar, desliza entre os dedos e se revela verdadeiramente como é –– a eternidade. Cresce, floresce, esticando-se, assim como uma criança cultivada em terra regada a açúcar e perfume; tornando-me um mágico barato ao viciar as mãos em puxar e puxar e puxar e puxar lenços coloridos amarrados entre si em nós de amor à tristeza. Quanto mais se tira, mais o corpo oco se preenche de agonia; quanto mais se estende os tecidos, mais o imperceptível poro se abre em chaga e vira estigma, erosão. O medo de ali se desfazer entrega um medo gritante e não podendo quebrar os espelhos, nem o que se reflete neles, muito menos gritá-los, o que resta é engolir a fera ainda viva; e uma canção quase imóvel sai do instrumento composto de um corpo silencioso, que por pouco não finge já estar morto para enganá-la. No fim, me apercebo bastante vizinho da fera dentro de mim: ela pensa que a criatura dentro dela sou eu e a sua sinfonia móvel e corporalmente barulhenta é o seu fingimento de presença diante da minha “partida” –– a sua vida, boca que embaralha todos os meus órgãos, tenta me tocar porque teme a minha quietude e a própria, enquanto a minha suposta viagem aos conhecidos Países Desconhecidos por todos, acabando por esbarrar em qualquer vivente e se assustando, teme o viver ele mesmo.

II

       Eu nunca soube viver. Quando se está aprendendo algo, as coisas são bem parecidas com um tatear, com um degustar diferentes águas, muitos vinagres e poucos vinhos. Ao menos é o que a acidez amarga da minha boca se faz ouvir. Apesar de nunca me embriagar, algumas construções de palavras me tiram da sobriedade. (E eu realmente rezo para que esteja claro que não estou dizendo sobre essas brincadeiras que agora estou inventando e que no horário e no lugar que você estiver lendo também estará me imaginando inventar) Digo dos aviõezinhos-de-palavras, dobrados pelas folhas das vozes, que são trazidos pelos ventos musculares e nos amassa no lugar onde atingiram. São kamikazes que não suicidam os seus soldados, mas assassinam, deixando ainda a respiração, os seus inimigos, que nada mais são do que os seus iguais. Tanto batem as duras aviações nas moles peles que até as furam e assim choram os sangues, os consanguíneos, os amigos e todos os outros.
       Uma das partes que me coube em uma dessas ofensivas, foi abrir os olhos, sem piscá-los enquanto a poeira e a terra se levantavam, tomar a frente para receber os tiros, sem esconder de minha mãe alguns –– alguns –– dos mais graves ferimentos, e cuidar do jardim naquilo que não consegui impedir, sem que as flores percebessem que eu estava cego e surdo e mudo. Arrumando toda a bagunça, caia de mim pouco a pouco um pouco da certeza de que aquilo foi um engano: não é impossível que um rei ataque, junto de seu exército, de sua cavalaria e de sua honra, um povo, ainda que lhe seja estrangeiro, inocente? O estrondo dessa realeza era tão alto que me tremia a mim e aos meus campos: esqueci a materna sombra que nina o meu corpo; duvidei da oração hereditária em seu nome que secretamente se faz sempre que o meu é dito; ignorei que a verdade poderia ter também o seu rosto. Perdoe-me por ter adocicado demais o café.

III
      
       Ela continuará onde está. A necessidade é cruel, traveste o inominável como o correto e o incerto como o deveras mal. Foi como se dissesse, ao saber que os girassóis precisam dos raios diurnos, que elas também, mais do que desejar, roubam as luzes urbanas. Sem o “se”; muito mais do que folclores urbanos ou lendas familiares subtendidas pelos criados ao recolherem os cacos pelos cantos da Casa Grande. E ela é a única daquele castelo, solitariamente cuidando de todas as torres, sejam de cartas, de concretos, de diferentes renovações carismáticas e, entrelaçadas a estas, de envelhecidos excessos, ainda bem presentes. Com todos os passos gastos ali ela já teria dado uma volta ao mundo; com as visões, que não eram apenas entregues pelas imagens ópticas, mas também pelas soletrações labiais, ela já seria capaz de reconstruir toda a superfície daquela realeza planetária, conhecendo como conhecia as fronteiras tectônicas de cada um dos seus membros. Mesmo assim, nas palavras de uma princesa qualquer, ela igualmente é a única estranha entre conhecidos, como um velho cigano tocando violino sob o luar. Talvez por isso o seu salário continua como míseros trocados, jogados pela música executada nem bem o suficiente, nem mal o bastante. O suor do forasteiro trabalho parece ser reconhecido só quando suja os pavimentos espelhados, mas não quando molha o cimento que fortifica o império.

IV

       Sim, as comidas estão garantidas, apesar dos pesos e dos pesares, preenchendo a mesinha pequenina com ganhos, compras, mas nada além disso. Mas como disse o profeta, não só de pão vive os sacrificados, mas também de toda alegria e de toda ingênua felicidade. Não se preocupe, mãe, ainda é segunda, aguente firme: sábado terá filme do Mazzaropi. Então nos sentaremos um ao lado do outro e, de alguma forma gargalhante, veremos um pouco da nossa história ali. Às vezes o pouco parece tão infinito...!

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