Ladrão de almas
Seus ouvidos
identificaram sons que indicavam que o telefone tocava. Era um dia como outro
qualquer, com a diferença que justamente hoje ele havia decidido acordar um
pouco mais tarde; seria um presente dele para ele mesmo já que era feriado.
Levantou confuso, mais para lá do que para cá, como se ainda sonhasse, como se
ainda despertasse, e logo foi em direção ao barulho, que se tornava mais e mais
alto na medida que se aproximava. “Será um dia proveitoso”, pensava, mas
primeiro deveria dar atenção aquela maldita ligação, até porque agora ele
queria saber quem é e para que estaria ligando naquele início de tarde.
Atendeu. A
confusão da sonolência foi dando lugar, na medida que a outra pessoa da ligação
falava, a um outro tipo de confusão, aquela que nasce quando você simplesmente
cai como um estrangeiro em uma conversa onde as línguas, elas sim, são as
verdadeiras estrangeiras. Inicialmente, do seu lado só ouve silêncio; em dois
ou três segundos tudo se passa em sua cabeça: se conseguiram o número do seu
telefone, certamente poderiam ter, se é que já não tivessem, o seu endereço, o
seu nome, como também um jeito de reconhecerem o seu rosto, ou seja, nessa
lógica associativa delicada que o nervosismo traça, o raciocínio buscava razões
para o dito “eles” terem posse de todas as privilegiadas informações sobre a
sua simplória e nada especial pessoa. Depois dessa viagem, que foi do fim ao
início de sua origem e da própria humanidade, ele tenta explicar que o que
estava acontecendo era um engano, que haviam errado o número ou qualquer coisa
do gênero; as suas mãos tremiam e sua voz, apesar de firme, deixava derramar um
pouco de inquietação entre uma frase e outra. Ele, acreditando que havia
deixado claro todos os mal-entendidos, avisa que desligaria o telefone, mas
antes que o batesse em sua base, ele conseguiu ouvir, tão nítido como uma
incerteza, uma ameaça.
Passam-se alguns
bons minutos até ele se perceber sentado de frente ao telefone, fazendo e
refazendo os loucos trajetos da viagem que ele conheceu enquanto era uma das
linhas que sustentavam a terrível, tenebrosa, a assombrosa e miserável,
ligação; de cima a baixo, da direita à esquerda, construindo toda uma geometria
paranoica, uma arquitetura do futuro.
Ergue-se de
supetão e decidiu que não dará mais atenção a isso, porque o seu dia estava
apenas começando e havia milhares de coisas a serem feitas, mais importantes e
necessitadas de seu cultivo. E essas coisas, do início da tarde até quase o seu
final, foram brilhantemente cuidadas, semelhante a um bom jardineiro que traz
consigo um radiante sol, uma maciez à terra e cristaliníssima água para as suas
flores. Como nem tudo nelas são delicadezas, nem nos céus são luzes e não
somente a sede que é morta pelas águas, uma hora ou outra ressurgia no
horizonte a seca, as nuvens cinzentas e tempestuosas –– a ameaça. Mesmo
silenciosa e quieta, as suas formas desestabilizavam a alma do rapaz, como um
colosso ou a um leviatã dentro de uma formiga, alastrando por meio de suas veias
solidão e solitude. Mas a formiguinha vigilante, com os pés no chão,
cantarolava desculpas e esperanças que acalmavam os monstros: eles blefaram,
jogaram néctar para colher mel, não sabendo eles que ele não se trata de uma
abelha; uma armadilha que deu errado e ainda que não tivesse dado, não haveria
um jeito de chegar até ali; ou pode ser um equívoco que certamente seria
reparado antes deles precisarem ir atrás do rapaz.
Os instantes em
que a força do seu corpo espiritual falha, empalidecendo o seu rosto, o fazendo
suar frio, as mãos outra vez sentindo um frio inexistente naquela época do ano,
se tornam cada vez mais frequentes desde o momento que ele próprio decidiu não
se importar com isso. De repente, ele ouve quebrarem o seu portão, vê entrarem
pela porta aberta e lhe matarem; pulando os muros da casa, entrarem pela porta
aberta e lhe matarem; baterem no portão, ele abrir e lhe matarem... Não faz
diferença estar de olhos abertos ou fechados, nem olhar para fora pelas janelas
ou ir à rua ver se tem alguém observando; o mínimo som, o menor movimento, as
conversas corriqueiras do dia-a-dia e as gritarias e os tráfegos de um feriado
agitado, tudo lhe dizia que a morte se aproximava e o mais triste, uma morte
por conta de um erro bobo que ele nem havia cometido. O fim da tarde chega e
sua luta se torna menos uma conquista do que qualquer outra coisa –– simples
tentativas de vencer o inevitável; de acalmar o silêncio com uma canção que tem
fim, arranjando desculpas para as figuras sólidas da geometria da certeza e
esperanças de não serem construídas os palácios subidos por outros. O corpo do
rapaz treme tanto ao ver sua casa sendo violada na calada da madrugada
resultando em sua última destruição que ele precisa fazer algo para acabar com
isso.
A lua cheia já
desponta radiante na sopa de estrelas. Por ser feriado, o caos urbano se
concentra em pontos específicos e espalhados pela cidade, um tanto longe da
casa do rapaz. Sem pensar mais de duas vezes, ele calça os sapatos e sai da
casa, sem se preocupar em trancar ou, no mínimo, fechar as portas e janelas.
Corre pelas ruas vazias se distanciando da sua, os passos ecoando e agitando o
asfalto; já não sente o corpo, alimentado até o último canto pelo colosso, pelo
leviatã. Vai para além, pensando em chegar lá o mais rápido que conseguia. Seja
qual for aquilo que eles planejaram para ele, nada adiantaria mais, porque enquanto
eles vêm com a morte, ele vai com o morto. E os pés do rapaz param diante de
uma ponte que fica em cima de um grande viaduto que agora está triste por conta
da falta de companhia naquele dia de folga. A formiguinha foi rasgada de dentro
para fora pelos gigantes monstros e assim, apesar daquela ligação ter roubado a
sua alma, não teriam nada mais dela: o rapaz olha para o viaduto e enxerga as
estrelas do céu e ao olhar para cima, ele vê as ameaças, escolhendo então voar.
Na casa do rapaz,
o telefone toca novamente.
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